Por diversos lados ouve-se o bordão da quebra do direito de ir-e-vir, imposto que foi pelos governos em função da pandemia. Aqui e acolá, alguns apontam pela violação da liberdade religiosa, uma vez que missas e cultos em geral estariam com a presença física de seus féis suspensa. Vez por outra, enfim, faz-se presente a defesa da liberdade plena, até mesmo em relação à auto exposição, que pode até gerar uma contaminação. Tudo, no entanto, pode levar à dúvida sobre os limites da atuação do Estado e da liberdade individual.
Observe-se que essas colocações ganham, ainda, outros contornos quando o Ministro Paulo Guedes mencionou, na última sexta feira, sobre a necessidade de se ponderar pela opinião do outro. Deu exemplos, assim, acerca das escolhas que cada um acaba por assumir, e finda sua assertiva ao ponderar sobre o direito de uma pessoa sã ser infectada nos dias atuais. Essa, uma questão que a filosofia e a lógica do Direito Penal têm se debruçado há muito anos, e, em verdade, vai para além de ponderações meramente principiológicas.
A discussão não é, assim, rara, nem somente destes tempos de hoje. Lembre-se que sobre isso já se dizia, há mais de 100 anos, durante a revolta da vacina. Ao procurar estabelecer uma campanha de saneamento do Rio de Janeiro de 1904, Oswaldo Cruz, então diretor geral de saúde pública, instituiu a vacinação obrigatória da população, o que fez eclodir a mencionada revolta, pesadamente reprimida pelas forças do governo.
É interessante se recordar que, em tempos mais recentes, o mesmo debate se fez presente, em especial quando da discussão sobre a inicial obrigatoriedade de uso do cinto de segurança em veículos automotores. Ao seu momento, mencionava-se que o motorista teria o direito de escolher se queria a proteção posta pelo instrumento de proteção ou não. Seria como a liberdade de escolha sobre o viver e morrer, ou, a liberdade ao suicídio.
Isso leva, necessariamente, a uma outra sorte de questionamentos. Existem limitações à liberdade individual ou seria ela plena? A liberdade pregada, por exemplo, por Stuart Mill, seria de todo ampla ou guardaria uma limitação intrínseca? Note-se que existem dentro de alguns âmbitos, principalmente ligados à saúde pública, fortes limitações à liberdade individual. Existem doenças de notificação compulsória. Existem crimes ligados à saúde pública, por onde dão-se amplas condições ao poder público para impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, afinal, aqui, não se trata do indivíduo em si, mas de como deve-se controlar a doença e, também, os hospitais. A irresponsabilidade de uma pessoa não pode replicar em um acirramento das condições de tratamento.
De se voltar, assim, ao início. Isso significa, contudo, que o governo pode limitar o exercício de liberdade individual? Sim, dentro de limites. Ninguém detém autonomia para ameaçar um bem comum, mesmo que com isso venha a ser tolhido, em parte, direito pessoal. O paternalismo legal é questionado mundo afora, principalmente quando ele versa sobre situações ligadas a questões envolvendo drogas. Mas ao se tratar de fórmulas de combate a um dos maiores eventos agressivos à saúde pública do último século, parece não haver dúvidas de uma necessária contenção de direitos.
Alguém pode abertamente mostrar-se despreocupado com qualquer sorte de contaminação? Essa seria, provavelmente, a pergunta que se mostraria a seguir. A resposta é que sim, mas deve aceitar que imposições podem ser impostas, nesses casos, de maneira paternalista, ainda que não de todo desejada. Aqui, a exceção se mostra regra. E o bem comum deve imperar, como também impera a regra de não ser crime a coação posta para impedir o suicídio. Enfim, talvez a questão venha a se tratar, sim, de princípios. E nessa ponderação, dada a crise, a vida deve prevalecer, mesmo que com isso devam ser contidos ímpetos individuais.
*Renato de Mello Jorge Silveira, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo